As noites, Ana Maria e eu gostávamos
de ficar na janela olhando os pescadores que saiam em busca do sustento, ao
longe podíamos ver as lanternas dando sinais, centenas delas na escuridão... Imaginávamos
o que estariam pensando, se estariam em paz ou preocupados, saudáveis ou
adoentados... Só Deus poderia saber! Mas era muito lindo contemplar o mar à
noite, aquela imensidão onde tantos segredos se escondem... Ver os transatlânticos
chegarem com seus apitos ensurdecedores, fazendo manobras, soltar seus botes para
levar os passageiros até ao cais para seus passeios. Ah! Mas quando partiam!
Geralmente à noite, eram como palácios ambulantes, saiam apitando, e todos
iluminados, aquilo era um presente para nossos olhos, ficávamos ali quietas, vivendo
aqueles momentos, que eram só nossos... Eles iam ficando pequenos, pequenos, até
virarem só um ponto de luz e sumirem no horizonte escuro deixando um rastro de
luz...
Outras noites, após os trabalhos,
chamávamos as crianças nos assentávamos no chão da cozinha e íamos competir para
ver quem fazia a careta mais feia, ali eram só risadas, cada uma queria fazer
melhor, a Licia que tinha se tornado uma mãe para o Peter, todo lugar em que ia
sempre o levava junto escanchado na cintura, era quem ganhava nas caretas
feias, porque ela tinha dentaduras e na hora ela usava desse recurso.
Pela manhã a musculatura do rosto
estava toda dolorida de tanto forçar e fazer caretas. A feira como já disse acontecia
todos os dias, Licia levava o Peter, não sabia sair sem ele, pensavam que era
filho dela com um espanhol dono do armazém, ele a chamava de mãe “Ia”, então os
amigos dela ficavam em dúvida, ela gostava, nunca dizia a verdade deixava
pensarem...
Quando menos esperávamos, a firma
que o marido trabalhava ofereceu a ele para vir para o triangulo mineiro, pretendiam
abrir ali naquela cidade uma filial, esclareceram que se tratava de uma boa
cidade, prospera e que seria de grande futuro. Soares não pensou duas vezes, apesar
de já ter se acostumado em Salvador, seria uma oportunidade de estar mais
próximo da família.
Isso não foi resolvido rápido, ainda
precisava arranjar alguém de confiança que pudesse assumir a filial de
Salvador. Havia um funcionário, dedicado atencioso, bastava um pouco mais de experiência,
Soares se pôs a prepara-lo para ocupar seu posto. O lugar escolhido no
triangulo foi Uberlândia, cidade progressista, com grande desenvolvimento, ali
seria a filial.
Acertaram para Soares ir
conhecer, arranjar local bom, bem central e de livre acesso. Precisariam de um
galpão espaçoso com boas instalações. Naquele ano ainda não deu. Começou aquela
revolução para tirar o presidente João Goulart, então parou tudo, o país não
fazia nenhum investimento, as multinacionais em alerta... Era esperar...
Não sabíamos até quando... A
Bahia virou um palco de guerra, não podíamos ir às ruas, as crianças não iam
para a escola. Ouvia dizer que muitas pessoas estavam sendo presas, não podiam
andar em grupos nem ficar parados nas esquinas, policiais armados por todos os
lados, nem todos tinham TV ouvíamos as noticias pelo rádio e nem sempre eram
verdadeiras. O terminal de ônibus era na Praça Castro Alves, em Salvador, tem
um bairro que se chama liberdade, naquela época um cara chegou para pegar o ônibus,
que já estava saindo do ponto, o cara gritou pra confirmar se era o seu, então
gritou "liberdade?" O policial que estava ali deu diversas cacetadas
no pobre homem e até que se explicasse que não era subversivo!
Exército nas ruas, cavalaria por
todos os cantos, perto do palácio ninguém passava, tudo vigiado e como!... Depois
que sossegou essa bagunça, veio o pedido de ouro para ajudar o Brasil o povo
fazia fila para entregar a única coisa que tinha de valor, acho que essa foi a
maior corrupção que já ouve, pois tiravam de todos com chantagem, dizendo que
era para refazer o Brasil, as pessoas pegavam tudo que tinham em ouro e levavam
para doar no palácio, eram joias antigas, com valores estimativos incalculáveis,
haviam pessoas que só tinham as alianças de casamento e iam entregar às vezes
chorando, juntaram centenas de quilos de joias e jamais ficamos sabendo de sua
utilidade e o que foi feito delas, o povo saqueado mais uma vez...
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